terça-feira, 25 de setembro de 2007

Marianna Leporace: Entrevista

ENTREVISTA: MARIANNA LEPORACE

Marianna Leporace é dona de uma vozes mais afinadas da nova geração de cantoras da MPB e possui uma técnica vocal perfeita. Presença de palco e carisma também não lhe faltam. “Falas Musicais” escolheu MARIANNA LEPORACE para abrir essa série de entrevistas com nomes da música brasileira.

- Você vem de uma família extremamente musical (Gracinha, Fernando). Como foi achar o seu próprio caminho no meio de tanta gente talentosa ?

ML: Acho que o fato de ter nascido e crescido num ambiente musicalmente rico, com tantos talentos em volta, (além de Gracinha e Fernando, meus pais também eram ligados à música e meus irmãos que não seguiram carreira também são extremamente musicais) me instigou a procurar outros caminhos antes de me render ao apelo natural da música. Eu achava que devia buscar um canal artístico diferente, criar uma historia só minha. Por isso comecei minha carreira fazendo teatro ainda bem menina e fui fazer faculdade de jornalismo, que era uma área que me interessava muito também, com certeza por influencia do meu pai que era radialista e jornalista. Durante o curso, trabalhei em musicais infantis e estudei na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras). Mas não tive muita saída e acabei abraçando a música profissionalmente assim que me formei. Continuei fazendo teatro paralelamente, mas a musica era a veia mais forte. Só que, talvez pelo histórico familiar e também por minhas próprias exigência, demorei muito pra me considerar uma cantora de verdade. Achava que devia me preparar muito bem, estudar bastante canto, antes de encarar o mercado profissional para justamente construir o meu lugar, o meu caminho. E foi exatamente o que fui fazer. Não foi fácil achar um caminho próprio, uma linguagem mais pessoal, mas acho que estou conseguindo construir isso aos poucos, a cada trabalho.

-A sua carreira começou com os jingles. Conte-nos sobre essa fase.

ML: Na verdade os jingles fizeram parte desse período de “aprendizado do oficio”, que falei. Assim que me formei, uma amiga da faculdade, que estava enveredando pela publicidade, me indicou pra um estúdio de jingles e daí fui fazendo contatos e conquistando espaços e fiquei um bom tempo trabalhando em gravações, não só de jingles, mas de tudo relacionado ao reino do canto. Foi uma escola muito interessante que me ajudou muito a desenvolver todas as técnicas que emprego hoje em dia nas gravações dos meus discos. Até o processo de memorização de letras e diversos repertórios eu devo a esse período intenso nos estúdios.

-As primeiras gravações. Quando e quais foram?
ML: Meu primeiro registro profissional foi no disco “Aldeia” que meu irmão Fernando dividiu com o compositor e pianista Mauricio Gueiros, em 1988. Gravei a música “Samba em Inglês” do Mauricio. Depois participei dos discos dos compositores Tião Neto (que era baixista de Sergio Mendes e Tom Jobim) e Guilherme Hermolin, até chegar em 1993 na gravação da música “Paraíso” de Danilo Caymmi e Dudu Falcão pra novela “Mulheres de Areia”. Essa música chegou a tocar bastante nas rádios, mas naquela época eu ainda não me reconhecia como cantora. Nessa altura eu cantava em dois grupos vocais (Zinnziver e Maite-Tchu) que foram escolas importantíssimas na minha carreira, mas não me via ainda desenvolvendo um trabalho solo.

-Você já compôs alguma música ?

ML: Já “cometi” algumas letras (risos). Falo isso rindo porque acho compor uma arte incrível e adoraria ter esse dom. Mas tenho quatro parcerias despretensiosas com meu irmão Fernando, Emerson Mardhine, Guilherme Hermolin e Gilberto Figueiredo. Só que todas continuam completamente inéditas e a única que ganhou vida nos palcos de fato foi a que fiz com Fernando, chamada “Até a Noite Acabar”.

-Fale-nos um pouco sobre o seu trabalho com Willians Pereira.
ML: Willians foi e continua sendo um grande encontro musical em minha vida. A gente se conheceu num belo show em homenagem ao compositor Sidney Miller realizado na Sala Funarte em 2002, com vários artistas. Logo depois ele foi assistir meu show com Sheila Zagury na Sala Baden Powell e em seguida me ligou dizendo que queria fazer um trabalho comigo. Eu topei na hora e começamos a pesquisar o repertório. Foi mais ou menos um ano e meio de trabalho entre pesquisa e ensaios e no fim de 2004 lançamos nosso primeiro CD chamado “A Canção, a Voz e o Violão”, onde homenageamos nossos instrumentos. Nunca mais nos separamos e agora estamos envolvidos com a pesquisa e os arranjos do segundo CD do duo.

-E o projeto com o Folia de Três?

ML: Esse é outro casamento antigo (risos). Cacala Carvalho e Eliane Tassis são minhas amigas há muitos anos e fomos a última formação feminina do grupo vocal Maite-Tchu, que foi muito atuante na década de 90.
Desde que o grupo acabou em 1998, alimentávamos o desejo de cantar juntas. Mas
os projetos pessoais, os interesses e objetivos de cada uma adiavam essa proposta até que em 2003 resolvemos investir de verdade no trio. Escolhemos como ponto de partida homenagear um único compositor e em 2005 lançamos o CD “Pessoa Rara” em homenagem aos 60 anos de Ivan Lins, pela gravadora Mills Records. O trio também está pesquisando repertório pra um próximo trabalho.

-O novo trabalho: Canções de Baden Powell. Fale-nos sobre ele.

ML: Esse disco se chamado “Marianna Leporace Canta Baden Powell”, foi um convite que recebi do produtor japonês Kasuo Yoshida, um apaixonado pela música brasileira. Ele vem ao Brasil umas três vezes por ano gravar artistas brasileiros pra lançar no Japão e eu já havia participado do disco “As Filhas da Bossa” produzido por ele. Quando ele me convidou pra gravar um disco solo em homenagem ao Baden, fiquei muito feliz e realizamos esse projeto no final de 2005, com músicos e arranjadores brasileiros.
O CD foi lançado no Japão em 2006, pela gravadora Toy’s Factory Music e licenciado no Brasil pela Mills Records em 2007.
Os arranjos do disco são do Yoshida, de Alain Pierre e dos filhos do Baden, Philippe Baden e Marcel Powell e tive um time de feras tocando comigo, além das participações de meus parceiros de estrada, Willians Pereira e Folia de 3. É um trabalho que me deixa muito contente e temos feito muitos shows por aí, inclusive agora me preparo para viajar com o Projeto Pixinguinha em outubro.

sábado, 15 de setembro de 2007

Programa de show


"Zé Ramalho faz a síntese do Nordeste"


No dia 12 de abril de 1978, o jornal "O Globo" publicou uma longa entrevista com Zé Ramalho feita pela jornalista Ana Maria Bahiana. Dois anos depois, essa mesma entrevista faria parte do livro "Nada será como antes - MPB nos anos 70" (Ed. Civilização Brasileira, 1980) que a jornalista lançaria, contendo várias entrevistas com outros artistas que ela fez ao longo do tempo. A entrevista de Zé Ramalho que transcrevo abaixo, está nas págs, 230/235.


"ZÉ RAMALHO FAZ A SÍNTESE DO NORDESTE" - Ana Maria Bahiana
"Olhos de fogo, rosto anguloso e maníaco, uma cabeleira enorme, dedos ossudos vibrando a viola, voz metálica: quem assistiu à estréia de Alceu Valença em teatro, aqui no Rio, há três anos, recordará muito bem a aparição/intervenção de Zé Ramalho da Paraíba às horas tantas do show desafiando o titular do concerto numa cantoria doida que partia de "Edipiana no. 1"e acabava em "Beija-flor" e "Treme-terra", "Octacílio Batista", "Zé Limeira", o que desse e viesse. Ameaçador. Intenso. Impressionante. Estranhamente, contudo, Zé Ramalho desapareceu logo depois, após uma rixa com Alceu em pleno palco, em São Paulo. Parecia mais uma carreira promissora terminada antes de começar, vitimada pelas já históricas dificuldades do mercado brasileiro.
-Era uma tensão insuportável - Zé Ramalho recorda hoje. - A gente estava em São Paulo numa casa bem atrás do aeroporto, era hélice e turbina o dia inteiro, a gente não conhecia a cidade, só ficava o dia todo, sem perspectiva nenhuma, sem saber o que fazer. Porque aquela excursão tinha lá um monte de nome de gente organizando, promovendo, não é, mas era só nome, mesmo, só pela firma, porque quem fazia tudo era a gente mesmo, era divulgação, montar aparelhagem, tudo. Uma coisa desgastante, aflitiva. E eu estava cada vez mais chocado com a agressividade da coisa toda, o clima de competição, uma coisa desesperada. Aí uma noite, no palco mesmo, em vez de fazer o meu número, que era "Jacarepaguá", me deu vontade de cantar "Vila do Sossego". Ficou um clima estranho, o Alceu se zangou, houve violas quebradas, mas nenhum escândalo. As pessoas acharam que era do show. E eu voltei pra Paraíba, pra pôr minha cabeça no lugar, juntar os pedaços.
Hoje, Alceu canta a violenta "Vila do Sossego"em seus shows, como homenagem ao companheiro: "Em seus papiros Papillon já me dizia/que nas torturas toda carne se trai/e normalmente, comumente, fatalmente, displicentemente/o nervo se contrai/com precisão".
E Zé Ramalho da Paraíba estréia hoje enfim em disco - pelo novo selo Epic, o "progressivo"da gravadora CBS - e, em concerto até domingo, no Teatro Tereza Raquel. Curiosamente cercado, já, por muito falatório tipo expectativa, e a escolha pelos leitores do Jornal da Música, como revelação de compositor de 1977.
-Não lamento nada do que fiz. Acho que faria tudo de novo, inclusive os erros. A palavra mais importante, pra mim, é síntese. Fiz uma síntese dos erros, e isso foi muito bom. Eu não acho ruim que as coisas sejam difíceis, batalhadas. Se fosse fácil, menina, já viu o que ia ter de qualquer um aí se achando o máximo, mandando ver. Tem de ser duro, mesmo, porque isso é que faz teu trabalho crescer, faz você ver se tem valor mesmo, se acredita no que faz.
A história de Zé Ramalho da Paraíba é tão estranha e intensa como sua música - e, como sempre a explica. Na sua música, os sons vêm expresso do sertão, secos e incisivos, mesmo quando interpretados por guitarras ou sintetizadores. E as letras causam espanto para quem não conhece a maravilha do repente, fonte onde Zé Ramalho bebe com frequência e humildade. São martelos, mourões, sextilhas, quadras - rigorosamente no estilo, rigorosamente alucinadas como é a melhor poesia do sertão, e urgentemente contemporâneas. Dizendo, por exemplo: "Se eu calei foi por tristeza/você cala por calar/calado vai ficando/só fala quando eu mandar/rebuscando a consciência /como meio de viajar/até a cabeça do cometa/girando na carrapeta/no jogo de improvisar ("Avôhai").

"Zé Ramalho faz a síntese do Nordeste"- Part 2

"No entanto, não foi cantoria e repente que Zé Ramalho se lembra de ter ouvido com atenção, pela primeira vez, mas Beatles e Roberto Carlos. Morava então em João Pessoa, meados dos anos 60, estudando no Colégio Marista. O sertão de Brejo do Cruz, onde nascera, a 3 de outubro de 1949, parecia uma lembrança opaca, uma fotografia.
-Meu pai, eu nem conheci. Morreu afogado num daqueles açudes do sertão quando eu tinha uns dois anos. Dizem que não fazia nada, era um seresteiro, um boêmio... A figura forte, para mim, ficou sendo meu avô, que foi até lá em Brejo do Cruz e tirou a família toda daquela situação de pobreza. Tirou mesmo, saiu puxando, retirante mesmo, em pau-de-arara. Levou a gente primeiro para Campina Grande, onde ele era fiscal, sabe fiscal de porteira como eles chamavam, ficava na fronteira controlando quem entrava e quem saía. Teve uma morte linda, meu avô. Parecia um rei. Morreu assim na cama na casa que ele construiu, com todos os filhos e netos e bisnetos em volta, eu fiquei assim comovido de tanta beleza, de ver uma pessoa indo adiante tão bonito, tão sereno, olhando em volta e vendo que tudo aquilo tinha saído dele, toda aquela gente. (É a figura já mítica do velho fiscal de porteira que abre o álbum de Zé Ramalho, evocado na canção "Avôhai": "Um velho cruza a soleira/de botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar/na laje fria onde quarava sua camisa e seu alforje de caçador/oh meu velho e invisível Avôhai").
De Campina Grande para João Pessoa e, lá o Colégio Marista, o rádio, os Beatles, os Rolling Stones e Roberto Carlos, as primeiras posições no braço do violão.
-Eu comecei a querer fazer música por causa do rádio, do que eu ouvia no rádio. E o que eu ouvia era isso, era principalmente Beatles e a coita toda da Jovem Guarda. Beatles, então, foi demais. A primeira vez que ouvi Beatles, fiquei impressionado, nunca tinha ouvido coisa tão forte, tão bonita. E, aí, os inevitáveis conjuntos para festa, baile, clube, boate: os Jets, os Demônios. "Era uma cópia mesmo, sabe, o que a gente queria era tirar a música, igualzinho ao disco. Mas foi muito bom como treinamento , como aprendizagem profissional."

Nota do blog: Zé Ramalho fez parte também de um grupo de baile chamado "The Gentlemen". Eles lançaram um LP, mas nesse disco Zé Ramalho não participa.


"E, como em todo canto - talvez mais aguda lá, em João Pessoa, "lá em cima", como Zé Ramalho diz "cidade pequena, restrita, onde o que influencia é o que vem do Sul, é como um grande alto-falante repetindo as coisas daqui de baixo"- a febre inicial dos conjuntinhos acabou tomando proporções maiores, uma tentativa meio louca, meio ingênua de viver, aqui, o sonho roqueiro que já estava terminando em seus países de origem.
-Ah, teve isso demais, lá. Eu toquei muito em festivais ao ar livre, essas coisas. Sabe, Woodstock, tudo isso, todo esse sonho, a gente acreditava pra valer. Só que as dificuldades lá eram imensas, era quase impossível fazer qualquer coisa, simplesmente não existiam os recursos.

Zé Ramalho chegou a vir várias vezes ao Rio, no início dos anos 70, "pra ver como é que era, o que estava sendo feito, quem tocava, como é que se fazia shows e tudo mais. Foi uma coisa louca, de dormir em banco de praça, virar rato de porta de show, essas coisas". Na época, estudava medicina - mas não por muito tempo. Já no segundo ano descobriu que não tinha nascido para ser doutor e resolveu buscar, na música, um caminho próprio. Pouco a pouco afastando-se de seus tempos de roqueiro, mas ainda sem saber em que direção ir, embora um antigo instinto, ou a memória que nunca morre, às vezes lhe soprasse, sem sentir, os rumos que segue, hoje. Foi, desse modo, por exemplo que, ao lado de outros jovens músicos nordestinos como Lula Côrtes, Paulo Rafael, Geraldo Azevedo e o próprio Alceu, que Zé Ramalho criou e executou o álbum duplo Paêbiru/Caminho da montanha do sol, para a etiqueta Rozenblit, selo original do Recife. Gravado "do modo mais artesanal, louco e carinhoso possível", em dois canais, durante quase todo o ano de 74, o álbum era uma espécie de suite em torno da legendária Pedra do Ingá, na Paraíba, rochedo coberto de misteriosas e indecifradas inscrições.

-Tinha muitos sons elétricos, mas eu já usava muito coisas como martelo agalopado, só que vestidas numa linguagem elétrica. Foi um trabalho lindo, que ficou assim como um registro histórico de uma época, de uma geração de músicos nordestinos.
O álbum nunca foi lançado comercialmente, e a maior parte de suas cópias foi perdida no alagamento dos depósitos da Rosenblit, durante as cheias do Capibaribe, no final de 74."

Nota do blog: Também raro e menos conhecido do público é o compacto simples "Réquiem para o circo - Made in PB", lançado em 1976 e que tem a participação de Zé Ramalho, declamando.\ um texto. Esse compacto, revolucionário para a época, era do grupo Ave Viola, da Paraíba, liderado por Dida Fialho, cantor, compositor e violonista de João Pessoa que ganhou o prêmio de melhor intérprete em um festival de música de São Paulo nos anos 70. O compacto é em formato de poster , dobrado em partes que formam a capa.







"Zé Ramalho faz a síntese do Nordeste"- Part 3

"O passo seguinte foi com Alceu, impulsionado no início de 75 pela boa repercussão de seu "Vou danado pra Catende: no festival "Abertura". O fim da jornada, briga, amargura e desilusão. Quase.
Na verdade, um renascimento. Um nascimento, na acepção da palavra: no final do ano Zé Ramalho foi procurado, em João Pessoa, por sua amiga, a cineasta Tânia Quaresma, que começava a rodar seu documentário "Nordeste: cordel, repente, canção". Tânia queria que Zé Ramalho fizesse a direção musical do projeto contactando cantadores e violeiros, ajudando-a na escolha do material. Não deixava de ser um desafio insólito para um ex-roqueiro, interessado por cantoria, mas sem maiores conhecimentos do assunto, na época. E Zé Ramalho se atirou ao trabalho de corpo e alma, com resultados surpreendentes:
-De repente, foi como se acordasse alguma coisa em mim que já existia há muito tempo, mas que estava assim meio esquecida, adormecida. Comecei a perceber como era fácil transar com aquele pessoal todo, era como se eu já conhecesse aquilo tudo há tempos, o que num certo sentido era verdade, só que eu não me dava conta. Aí eu mergulhei mesmo, fiquei louco com a força daquilo tudo, principalmente o repente. O repente é uma coisa incrível, os repentistas são verdadeiros criadores na acepção da palavra, criando coisas complexas na hora, sem hesitar, no minuto mesmo. Nem todo cantador é repentista, só alguns poucos, uma espécie de elite, porque é uma arte muito requintada. E são pessoas assim que tem uma cultura enorme, tem muitas enciclopédias e livros em casa, e os que são analfabetos, é claro - lêem muito, são sempre informados de mitologia, geografia, história, tudo, porque, num desafio, tem que ser rápidos na
resposta, tem de saber todos os assuntos.

-Aí eu fiquei de tal forma apaixonado, que quando acabou o trabalho da Tânia, continuei por conta própria, saí pelo sertão ouvindo, gravando, ganhando amizade dos cantadores a ponto de, daí a um pouco, já estarem vindo na minha casa, fazer cantoria. E isso, para mim, não teve nenhum conflito com o que eu gostava antes, com o que eu fazia. Porque eu acho que, se alguma coisa é sincera e bonita, em música, então não importa de onde veio. É claro que o rock e os Beatles expressavam uma realidade deles, lá, mas aquilo me tocou a sensibilidade, então não havia porque jogar isso fora. Já estava dentro de mim. Mas a força do repente foi tamanha que, se algum lado meu saiu perdendo nesse confronto, foi meu lado mais antigo, de roqueiro.

Quem conhece o mundo do repente e da cantoria, logo liga o trabalho de Zé Ramalho ao de outro Zé, o Limeira, o Buñel do sertão, poeta alucinado, surrealista. Foi certamente de Zé Limeira que Zé Ramalho tirou a inspiração para seus "a cor desse olho é denso negror/é como o bafejo da Hidra de Sal/dragões do meu sono que rasgam anúncios da televisão" e "meu treponema não é pálido nem viscoso/os meus gametas se agrupam no meu som". E ele não nega:

-De todos, pra mim, Zé Limeira é o maior, o mais impressionante. Tem gente que acha ele absurdo, engraçado, mas eu não vejo graça nenhuma na poesia dele: para mim é tudo muito exato, muito real, é o sertão mesmo. Tenho depoimentos de violeiros muito antigos, que tocaram com ele, descrevendo sua figura: era impressionante, muito louco, uma coisa muito bonita. Imagine, lá nos anos 40, um preto enorme, quase dois metros de altura, com os dedos cheios de anéis, cheio de colares, lenço vermelho, um chapelão, andando a pé, porque ele só caminhava, não usava transporte nenhum. Devia ser uma coisa linda.

Alimentado pela síntese final, o encontro do Zé Ramalho urbano com o menino de Brejo da Cruz, o trabalho estava pronto. E, acreditando nele como nunca, Zé Ramalho desceu novamente para o Rio, disposto a "romper com o mundinho de João Pessoa, a família, os medos todos" e lutar por sua música. Depois de um ano difícil, afinal encontrou sua brecha, com substancial ajuda de Carlos Alberto Sion, produtor de seu disco. E,mais do que fé, tem força para continuar adiante.

-Acho que não vai haver nunca mais um movimento na música brasileira, mas não precisa. Não tem nem cabimento. Movimento é a cabeça de cada pessoa, e o fato dessas pessoas estarem aí trabalhando, mostrando sua música e sendo ouvidas apesar de todas as dificuldades.

E o fato de, hoje, existirem tantos nordestinos agitando na música brasileira mais atual, seria coincidência ?

-Ah, não sei...O que a gente lá de cima tem é um sangue muito forte, muito rebelde mesmo, essa coisa de Lampião, de não se conformar, de querer romper com as coisas e suplantar os obstáculos. E depois a cultura, o som de lá é muito forte, mesmo, uma coisa muito inteira que só quem é de lá conhece naturalmente, porque foi muito deformada aqui pelo Sul. Talvez seja a soma disso que marque o trabalho de tanta gente de lá na música, hoje."
(O GLOBO, 12/04/1978)


E foi, nesse mesmo ano, que Zé Ramalho fez um show fundamental em sua carreira e que o alavancaria de vez para o sucesso e o reconhecimento do grande público. Foi em São Paulo, no Teatro Célia onde ele lançou o seu disco daquele ano que tinha a canção AVOHAI, um de seus maiores sucessos. Nesse show ele contou com a participação dos conterrâneos Pedro Osmar e Cátia de França que também estavam chegando de João Pessoa atrás de seus espaços para mostrar sua arte. Amelinha, na época sua esposa, também participou desse show cujo repertório pode ser conferido ao lado.


Mas foi no ano de 1981 que Zé Ramalho realmente pode dizer que a consagração total havia chegado. Era o mes de novembro e ele faria uma apresentação do Projeto Seis e Meia (de Albino Pinheiro) , no Teatro João Caetano, em plena Praça Tiradentes no centro do Rio de Janeiro. O show começaria às 18:30hs, mas às duas da tarde, os ingressos já estavam esgotados. Zé Ramalho e a Banda Potiguar "Flor de Cáctus" que dividia o show com ele, foram então para o meio da praça fazer o show para um público delirante que consagrou o paraibano e teve a surpresa de ver a participação especial de Raimundo Fagner que estava dividindo o palco com Zé Ramalho pela primeira vez. Foi no meio da canção "A terceira lâmina", título do terceiro disco de Ramalho, que Fagner entrou, deixando a platéia extasiada enquanto o cearense se atrapalhava todo, errando a letra e apelando para os lá, lá, lá, lá, ê ô... "Eternas Ondas" (de Ramalho e sucesso de Fagner) veio a seguir, seguida de "Fanatismo" e o final com "Frevo-mulher" . Nesse show a recepção do público mostrou a Zé Ramalho que a jornada de Brejo da Cruz até o Rio de Janeiro tinha, finalmente, valido a pena.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Ronnie Von - Boneco dos anos 60


Será que Chico Science ficou sabendo ?


Este artigo abaixo transcrito é de autoria de Pedro Osmar, cantor, compositor, artista gráfico, e pensador paraibano e um dos fundadores do projeto cultural coletivo "Jaguaribe Carne" que influenciou muitos artistas como Chico César, por exemplo. O artigo foi publicado na revista cultural de Fortaleza "Arraiá Pajéurbe "no. 2 de janeiro/fevereiro de 2002.


SERÁ QUE CHICO SCIENCE FICOU SABENDO ?


" Jomard Muniz de Brito e Ariano Suassuna: a tensa corda da cultura em Pernambuco gerando diálogos e o que o novo sempre pôde sugerir na vida e na arte, em se tratando de saídas e caminhos apontados para o futuro, mais que escuro: aquela luzinha brilhando dentro da casa da gente, dentro da cabeça da gente, para muitas outras possibilidades de clarão, onde e quando a indústria cultural pôde ou não funçar com suas pinças quase sempre cheirando a merda. Anos 70, 80, 90, até dias de hoje: a rosa dos ventos do Alceu Valença, Lula Côrtes, Zé Ramalho, Ivinho, Israel Semente, Geraldo Azevedo, entre outros, a partir de algumas provocações de um certo cidadão, fotógrafo paulista, chamado Paulo Klein que baixou naquele momento nas casas e nas vidas dessa galera que prontamente atendeu ao chamado radical e festivo de época para a experimentação, para as profusões de exercícios criativos em música, poesia, artes plásticas, cinema, etc eram momentos, atos e atitudes manifestas, manifestos que traziam muito do que Pernambuco sempre legou para a cultura nordestina e brasileira. Quando Alceu Valença e sua Banda Batalha Cerrada aportaram no Festival "Abertura" da Rede Globo em 1975 com a música "Vou Danado prá Catende"(em cima do poema de Ascenso Ferreira) o fizeram como sementes dessa micro revolução plantada por essas viagens e carícias, fruto de uma vontade geral, ampla e irrestrita de acender o novo, de novo, pelas ruas, mangues, tocas, favelas e mansões daquele período tão carente de novidades ( e ainda hoje). Importante saber: Raul Córdula, Chico Pereira, Carlos Aranha, Marcus Vinícius de Andrade, Celso Marconi, Jomard Muniz de Brito e tantas outras cabeças paraibanas e pernambucanas já antenadas, também estavam presentes nessa festa desde os anos 60, época em que o manifesto tropicalista foi elaborado, discutido e assinado em Recife por essa geração que não arredou o pé e tem segurado a onda até hoje. Não foi à toa que no início dos anos 70, mesmo com todo o movimento armorial, quintetos violados e bandas de pau e corda procurando reler o regional pelo regional, o regional para os salões da elite, o regional como um mero artifício do cão que quer morder o próprio rabo, novos produtos foram surgindo na vida cultural de Pernambuco oriundos dessa viagem para o novo: livros e discos alternativos que foram levando aquela geração para a extrema criatividade, para uma eterna mocidade, para um radicalismo cangaceiro, de um conteúdo fundado mais na senzala do que na Casa Grande, mais no terreiro do que na Igreja, e principalmente na soma da viola caipira de Ivinho e Zé Ramalho com a guitarra enlouquecida de Robertinho de Recife e o tricórdio de Lula Côrtes, sim Lula Côrtes e Kátia Mesel, a dupla dinâmica que forneceu a base de muita coisa que veio a acontecer por aqueles dias de loucura criativa e boemia roqueira. E daí, dessa genealogia comportamental, que vem um livro fundamental: o livro das transformações, livro-objeto, projeto, projétil, processo que seria a ponta de lança de um tipo de literatura que iria além da palavra, que ousaria chegar à invenção de um novo procedimento, até chegar à Bienal Internacional de Arte e ser reconhecido como um marco do "livro como obra de arte" do nordeste ainda dos coronéis. (Anos depois, década de 90, Fortaleza retomaria essa idéia de um projeto mais arrojado como suporte contemporâneo de sua literatura através da revista Arraiá Pajéurbe, busca e nova procura para um reposicionar o nordeste nessa atualidade cultural em curso). Em Pernambuco, naquela época, havia muita coisa no ar. Inclusive helicópteros, aviões e discos voadores poéticos , deuses e demônios poéticos participando dessa festa cuja repercussão tem seu eco revigorado no movimento manguebeat dos anos 90, luz de Josué de Castro como um outro provocador de situações sociológicas novas para Pernambuco e para o mundo. (A geopolítica da fome com guitarras e tambores, anunciando um novo Carnaval para essa década culturalmente tão feliz), Chico Science e Nação Zumbi: a refumaça da comunicação como trombeta dos índios de paletó e gravata da pós-modernidade, e tudo ou quase tudo (polêmicas à parte) , começando com a simplicidade do conjunto The Jets (erguendo-se aí a ponte sonora das guitarras e vozes "Jovem Guarda" de Reginaldo Rossi, Fernando Filizola e outros) nos anos 60 em Recife, anunciando a tempestade sorridente do que viria mais tarde. E o que o Livro das Transformações tem a ver com essas coisas ? Este livro foi um manifesto contra a mesmice cultura, fincando um outro procedimento e rasgando os papéis de uma poesia e de uma arte de gabinete que até então estivera interessada apenas em se comportar direitinho para poder fazer parte das academias de letras e suplementos literários das províncias. E é claro que a transformação não estava se dando apenas nas letras, mas também nas imagens e na música, profusão de tanto "sentir" e "agir" ao novo que até hoje, quando relido e revisto e remanuseado, provoca aquela mesma sensação da primeira vez em que foi projetado e discutido nos círculos de inteligência do Brasil. "

Será que Chico Science ficou sabendo ? Parte 2

"Aí começaram a aparecer os discos dessa geração, tendo sempre Lula Côrtes e Kátia Mesel como pano de fundo, ora nas capas lindas e no projeto gráfico diferente, experimental, ora na conquista de uma sonoridade "roqueiro-regional" que viria influir definitivamente na estética e no comportamento da música nordestina como forma de apreensão dos ícones da música mundial: Beatles, Rolling Stones, Ravi Shankar, Mahavishinu Orchestra, Yes, Pink Floyd, Jimmi Hendrix, Janis Joplin, etc.
São dessa época, 1973 em diante, os discos PAÊBIRU (de Lula Côrtes e Zé Ramalho, com participação de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Ivinho, Israel Semente, Jarbas Mariz entre outros). ODE A SATWA (de Lula Côrtes e Laílson, com uma música instrumental à base de violão folk e tricórdio, como prenúncio do que aconteceria em João Pessoa com o grupo Jaguaribe Carne, em 1974), MARCONI NOTÁRIO NO REINO DOS METOZOÁRIOS (com a participação de toda a galera pesada do rock-maracatu da época, já plantando as sementes do que seria o manguebeat), AVE SANGRIA (Banda que se chamaria "Tamarineira Vilage" e que tinha Marco Polo como sua base de letras e voz), FLAVIOLA (um disco de cantor muito interessante), entre outros, que foram aparecendo e compondo a cena nova e real da música pernambucana.
Recentemente, o jornalista José Teles lançou o seu livro "Do frevo ao manguebeat" (Editora 34, São Paulo), registro importantíssimo e detalhado de praticamente todos estes acontecimentos aqui relatados, bom de ser lido e estudado por todos aqueles que se interessam pela história da música popular brasileira atual (acho que o Livro das Transformações não está citado por José Teles talvez por se ligar mais nos aspectos gerais da música nordestina, mas é claro que o diálogo da música com a poesia sempre foi mais longe e sempre esteve muito presente em todos os grandes acontecimentos dessa época e os produtos do período testemunham isso. O futuro diria quem estava com razão, ou melhor, quem conseguiria ir mais longe, plantar mais árvores, fazer mais filhos e continuar se fazendo ouvir e ver e ler por esse Brasil e mundo afora. Kátia Mesel virou cineasta, com uma imensa lista de produções, discutindo a urbanidade e o mangue em sua dimensão política, sendo discutida em mostras por todo o país(produção pouco conhecida em João Pessoa), Alceu Valença, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Lula Côrtes tiveram e tem um importante papel na música popular brasileira, com discos fundamentais, balizadores de uma evolução (via Raul Seixas) que a partir do começo dos anos 70 uniria pernambucanos e paraibanos no desenvolvimento de um projeto cultural que continua dando bons frutos até hoje.

O movimento manguebeat (Chico Science e Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Mundo Livre S.A., Otto, etc) atualizaria todos esses pressupostos plantados pelo movimento. Movimento este provocado pela ação espontânea e simples do fotógrafo Paulo Klein na cultura das cidades do Recife e Olinda (será que ele realmente teve esta importância sentida por mim no depoimento de vários artistas e produtores ? )

Quanto a Ariano Suassuna, teve uma atuação importantíssima nesse processo por ter criado o outro lado da margem desse rio caudaloso de expectativas fazendo caminhar com inteligência e honestidade lado a lado com essa tempestade desatada pelo rock no nordeste brasileiro, a chama de sua fé sebastiânica, seus causos, seus heróis de tantos cangaceiros de paletó e gravata. Ariano Suassuna e Jomard Muniz de Brito são os responsáveis históricos pela manutenção desse cabo de guerra cultural de tantos "palhaços degolados", imprescindível a qualquer contexto onde a inércia teve que ser tratada a pauladas, para resultar em marcos mais que técnicos, fundamentos mais éticos e estéticos. É claro que o movimento armorial ou romançal não conseguiu produzir o seu "livro das transformações", mas nem por isso deixou de dar as suas contribuições no resguardo dos valores da cultura popular e folclórica, radicalmente e conscientemente defendidas oir Ariano e seus seguidores durante a sua vida de escritor e intelectual. O bom é que essa onda toda mexeu e remexeu na história da cultura nacional para sempre e aí, sim, unindo e somando tudo, o nordestes tenha sido o grande livro das transformações da cultura brasileira para um novo modernismo, uma contemporaneidade politizada que vai sempre buscar a verdade das necessárias transformações. Nordeste de Capiba e Jackson do Pandeiro, de Hermeto Paschoal e Geraldo Vandré, de Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira, nordeste do tropicalismo e do armorial, do manguebeat e do mistério que certamente continuará vindo para outros e novos abrigos estéticos. (Nordeste do Mestre Salustiano e de Chico César, de Cachimbinho e Didier Guigue, do Jaguaribe Carne e Zé Filho).

O livro das transformações tem tudo a ver com isso, hoje um farol que continua sendo o grande referencial de uma estética para o nordeste cangaceiro de néon, acrílico das contradições de um povo que ainda vai passar muita fome até conquistar o reconhecimento de sua liberdade armada por uma melhor condição de vida, para um novo começo de conversa. Por aí a gente vai melhor."

Pedro Osmar, 23/09/01