sábado, 15 de setembro de 2007

"Zé Ramalho faz a síntese do Nordeste"- Part 3

"O passo seguinte foi com Alceu, impulsionado no início de 75 pela boa repercussão de seu "Vou danado pra Catende: no festival "Abertura". O fim da jornada, briga, amargura e desilusão. Quase.
Na verdade, um renascimento. Um nascimento, na acepção da palavra: no final do ano Zé Ramalho foi procurado, em João Pessoa, por sua amiga, a cineasta Tânia Quaresma, que começava a rodar seu documentário "Nordeste: cordel, repente, canção". Tânia queria que Zé Ramalho fizesse a direção musical do projeto contactando cantadores e violeiros, ajudando-a na escolha do material. Não deixava de ser um desafio insólito para um ex-roqueiro, interessado por cantoria, mas sem maiores conhecimentos do assunto, na época. E Zé Ramalho se atirou ao trabalho de corpo e alma, com resultados surpreendentes:
-De repente, foi como se acordasse alguma coisa em mim que já existia há muito tempo, mas que estava assim meio esquecida, adormecida. Comecei a perceber como era fácil transar com aquele pessoal todo, era como se eu já conhecesse aquilo tudo há tempos, o que num certo sentido era verdade, só que eu não me dava conta. Aí eu mergulhei mesmo, fiquei louco com a força daquilo tudo, principalmente o repente. O repente é uma coisa incrível, os repentistas são verdadeiros criadores na acepção da palavra, criando coisas complexas na hora, sem hesitar, no minuto mesmo. Nem todo cantador é repentista, só alguns poucos, uma espécie de elite, porque é uma arte muito requintada. E são pessoas assim que tem uma cultura enorme, tem muitas enciclopédias e livros em casa, e os que são analfabetos, é claro - lêem muito, são sempre informados de mitologia, geografia, história, tudo, porque, num desafio, tem que ser rápidos na
resposta, tem de saber todos os assuntos.

-Aí eu fiquei de tal forma apaixonado, que quando acabou o trabalho da Tânia, continuei por conta própria, saí pelo sertão ouvindo, gravando, ganhando amizade dos cantadores a ponto de, daí a um pouco, já estarem vindo na minha casa, fazer cantoria. E isso, para mim, não teve nenhum conflito com o que eu gostava antes, com o que eu fazia. Porque eu acho que, se alguma coisa é sincera e bonita, em música, então não importa de onde veio. É claro que o rock e os Beatles expressavam uma realidade deles, lá, mas aquilo me tocou a sensibilidade, então não havia porque jogar isso fora. Já estava dentro de mim. Mas a força do repente foi tamanha que, se algum lado meu saiu perdendo nesse confronto, foi meu lado mais antigo, de roqueiro.

Quem conhece o mundo do repente e da cantoria, logo liga o trabalho de Zé Ramalho ao de outro Zé, o Limeira, o Buñel do sertão, poeta alucinado, surrealista. Foi certamente de Zé Limeira que Zé Ramalho tirou a inspiração para seus "a cor desse olho é denso negror/é como o bafejo da Hidra de Sal/dragões do meu sono que rasgam anúncios da televisão" e "meu treponema não é pálido nem viscoso/os meus gametas se agrupam no meu som". E ele não nega:

-De todos, pra mim, Zé Limeira é o maior, o mais impressionante. Tem gente que acha ele absurdo, engraçado, mas eu não vejo graça nenhuma na poesia dele: para mim é tudo muito exato, muito real, é o sertão mesmo. Tenho depoimentos de violeiros muito antigos, que tocaram com ele, descrevendo sua figura: era impressionante, muito louco, uma coisa muito bonita. Imagine, lá nos anos 40, um preto enorme, quase dois metros de altura, com os dedos cheios de anéis, cheio de colares, lenço vermelho, um chapelão, andando a pé, porque ele só caminhava, não usava transporte nenhum. Devia ser uma coisa linda.

Alimentado pela síntese final, o encontro do Zé Ramalho urbano com o menino de Brejo da Cruz, o trabalho estava pronto. E, acreditando nele como nunca, Zé Ramalho desceu novamente para o Rio, disposto a "romper com o mundinho de João Pessoa, a família, os medos todos" e lutar por sua música. Depois de um ano difícil, afinal encontrou sua brecha, com substancial ajuda de Carlos Alberto Sion, produtor de seu disco. E,mais do que fé, tem força para continuar adiante.

-Acho que não vai haver nunca mais um movimento na música brasileira, mas não precisa. Não tem nem cabimento. Movimento é a cabeça de cada pessoa, e o fato dessas pessoas estarem aí trabalhando, mostrando sua música e sendo ouvidas apesar de todas as dificuldades.

E o fato de, hoje, existirem tantos nordestinos agitando na música brasileira mais atual, seria coincidência ?

-Ah, não sei...O que a gente lá de cima tem é um sangue muito forte, muito rebelde mesmo, essa coisa de Lampião, de não se conformar, de querer romper com as coisas e suplantar os obstáculos. E depois a cultura, o som de lá é muito forte, mesmo, uma coisa muito inteira que só quem é de lá conhece naturalmente, porque foi muito deformada aqui pelo Sul. Talvez seja a soma disso que marque o trabalho de tanta gente de lá na música, hoje."
(O GLOBO, 12/04/1978)


E foi, nesse mesmo ano, que Zé Ramalho fez um show fundamental em sua carreira e que o alavancaria de vez para o sucesso e o reconhecimento do grande público. Foi em São Paulo, no Teatro Célia onde ele lançou o seu disco daquele ano que tinha a canção AVOHAI, um de seus maiores sucessos. Nesse show ele contou com a participação dos conterrâneos Pedro Osmar e Cátia de França que também estavam chegando de João Pessoa atrás de seus espaços para mostrar sua arte. Amelinha, na época sua esposa, também participou desse show cujo repertório pode ser conferido ao lado.


Mas foi no ano de 1981 que Zé Ramalho realmente pode dizer que a consagração total havia chegado. Era o mes de novembro e ele faria uma apresentação do Projeto Seis e Meia (de Albino Pinheiro) , no Teatro João Caetano, em plena Praça Tiradentes no centro do Rio de Janeiro. O show começaria às 18:30hs, mas às duas da tarde, os ingressos já estavam esgotados. Zé Ramalho e a Banda Potiguar "Flor de Cáctus" que dividia o show com ele, foram então para o meio da praça fazer o show para um público delirante que consagrou o paraibano e teve a surpresa de ver a participação especial de Raimundo Fagner que estava dividindo o palco com Zé Ramalho pela primeira vez. Foi no meio da canção "A terceira lâmina", título do terceiro disco de Ramalho, que Fagner entrou, deixando a platéia extasiada enquanto o cearense se atrapalhava todo, errando a letra e apelando para os lá, lá, lá, lá, ê ô... "Eternas Ondas" (de Ramalho e sucesso de Fagner) veio a seguir, seguida de "Fanatismo" e o final com "Frevo-mulher" . Nesse show a recepção do público mostrou a Zé Ramalho que a jornada de Brejo da Cruz até o Rio de Janeiro tinha, finalmente, valido a pena.

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