terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Djavan - Entrevista de 1982


A entrevista abaixo, saiu na revista de música "Pipoca Moderna" em seu no. 1, lançado em outubro de 1982. O texto é de José Emilio Rondeau e a foto ao lado, que ilustra a entrevista, é de Maurício Valares.


"Há exatamente um ano, quando vasculhava-se ainda em Djavan a procedência de sua tão estranhada música, ele conseguia resguardar uma nesga de anonimato que o permitia até receber voz de prisão em pleno centro de São Paulo - um episódio real que embaraçou delegados, policiais e detetives e que, por fim, transportou Djavan para os primeiros cadernos dos jornais e, possivelmente, apresentou-o a uma grande parcela do público que mantinha-se incólume a sua música, mesmo que de maneira tão gauche. Afinal, naquele tempo Djavan encarnava um fenômeno bastante peculiar na cena musical brasileira: era um artista de prestígio crescente entre os artistas, mas que, de alguma forma, mantinha-se à margem dos ditatoriais playlists das rádios e mais ainda dos toca-discos. Por ineficiência promocional ou cegueira (ou surdez) coletiva, Djavan era um artista adorado por muita gente, mas rigorosamente desconhecido.

Sua música também não ajudava. A capacidade que Djavan sempre teve de, em pinceladas exatas, criar paisagens musicais tão diversas, impossibilitava qualquer fácil deglutição num país tão viciado no venha-a-nós-vosso-reino. As letras falavam de coisas a que todos já haviam se acostumado a ouvir, mas por caminhos poéticos vertiginosamente opostos ao costume, que misturavam verve quase literária a prosa coloquial com uma naturalidade que enervava. Sem contar os ritmos que desnorteiam qualquer um que esqueça que samba, blues, maracatu, maculelê, afoxé e rock tem origem comum na África e aceitam ser transformadas em mesclas democráticas. Na bestificante e assustadora padronização por baixo da maior parte da criação musical brasileira, parecia não haver lugar para Djavan.

O fato é que Djavan só começou a crescer nos olhos e ouvidos do público justamente através de seus admiradores mais ilustres e tão mais digeríveis , como Maria Bethânia (que gravou “’Alibi”) e Roberto Carlos ( que gravou “A ilha”). Nova armadilha formou-se então: Djavan passou de quase desconhecido a compositor sem voz, rosto menos ainda. Mas , pouco depois, começou a rolar uma curiosa bola de neve. Em seu terceiro álbum, Alumbramento, Djavan incluiu uma música que, misteriosamente, conseguiu infiltrar-se nas rádios e acabou tornando-se uma das faixas mais executadas em todo o país em 1980, “Meu bem querer”. A bola não parou mais de rolar. Famoso de súbito,. Djavan ganhou voz, pouco dinheiro – já que nunca fora um grande vendedor de disco a até três meses atrás, embora as bilheterias de seus shows sempre afirmassem o contrário – e, o mais importante, tornou-se um artista desejado por outras gravadoras, as mesmas que antes não pestanejariam uma vez sequer ao dizer-lhe não. Na disputa de seu passe estava a CBS.

A negociação com a CBS durou um ano, até meados de 81. A proposta inicial da gravadora (ambas partes negaram-se a especificar quantias) estava bastante distante do que Djavan pretendia e foram necessárias diversas modificações nos termos da contratação até chegar-se a um acordo. O problema na resumia-se a números, admite Djavan, as foram feitos cinco contratos para que um fosse aceito. No derradeiro, Djavan ainda acrescentou quatro cláusulas e retirou outras três.

Depois de seis meses de um crescendo de expectativa – gerado , em parte, pelo alto pendor badalativo da CBS, em parte pelo simples fato de Djavan já estar, a essa altura, há um ano e meio sem gravar – foi anunciado que Djavan, uma das promessas mais viáveis de verdadeira renovação da música do Brasil, gravaria seu novo disco nos Estados Unidos. Com um produtor norte-americano.

As pedras começaram a chover feito tempestade. O exemplo mais próximo de junção EUA/Brasil em termos de música brasileira, o período Nightingale/Realce/Luar de Gilberto Gil, havia-se mostrado tão fracativo quanto frustrante. Ninguém – inclua aí mais crítica do que público e indústria fonográfica – esperava nem desejava ver mais um artista brasileiro engolido pelo fascínio fácil do ouro de tolo da América. Menos ainda Djavan, ainda tão refrescante, ainda tão potencial. Logo Djavan, que já se mostrara tão avesso à idéia de buscar o que fosse nos Estados Unidos, que já dissera na imprensa que “é fogo fazer um som igual ao que está se fazendo lá fora, onde tudo está zero mesmo, parou tudo, acabou, é aqui que a gente tem que se virar.” Mesmo assim Djavan foi e a CBS apostou suas melhores cartadas em sai ida: na falta de David Grusin e Quincy Jones, concordaram em contratar a produção de Ronnie Foster, que, entre outros já trabalhara com George Benson. Músicos de alto quilate – como o baterista Harvey Mason, o flautista Hubert Laws e o saxofonista Ernies Watts – foram arregimentados para completar a formação habitual da banda de Djavan, Sururu de Capote. E, cacife dos cacifes – Stevie Wonder acabou por adicionar sua gaita ao diálogo em versos de “Samurai”, uma das faixas de LUZ, o álbum que resultaria de 45 dias trancado no Yamaha Studios , em Los Angeles.
Quando retornou ao Brasil, Djavan tinha a sua espera uma imensa curiosidade. E uma animosidade talvez até maior. Afinal de contas, o que Djavan teria ido buscar nos Estados Unidos, justo agora quando uma explosão de popularidade mostrava-se iminente ? Justo agora quando qualquer tipo de concessão, depois de tanta perseverança para não desviar de seu plano de vôo inicialmente traçado, era desnecessário ?
O tão temido sotaque norte-americano de “Luz” – lançado com uma tiragem inicial de 100 mil cópias, 30 mil a menos do que o somatório das vendas de toda a sua discografia anterior – é imperceptível para alguns: indiscutível para outros. E a música de Djavan, aquela coisa tão difícil de explicar, tão intrigante a ponto de ser de duro acesso, mudou ? Mudou, na medida em que toda a experiência norte-americana influiu sobre a sua feitura, na mesma proporção em que viagens anteriores a Angola e a Cuba apontaram nuances em Djavan que estavam nele desde o nascimento, mas que ele ainda na havia realizado a contento. Mudou, também, em certa parte, na embalagem, na medida em que a idéia inicial era de se lançar “Luz”também nos Estados Unidos (pensa-se ainda em uma versão americana do disco). E o Djavan que agora é festejado com queijos e vinhos no Rio Palace e no Maksoud (ele mesmo estranhou os festejos suntuosos quando soube deles, mas cedeu ao ver que a suntuosidade seria reduzida a um mínimo), esse Djavan mudou ?

“Eu sabia do risco de cair no padrão, no invólucro do produto americano,” conta Djavan num estúdio situado estrategicamente abaixo da axila direita do Cristo Redentor, no Humaitá, enquanto Sururu de Capote esquenta as turbinas para mais um longo ensaio antes da excursão nacional que já o levou a Belo Horizonte, ao Rio de Janeiro, a Curitiba e que agora aporta em São Paulo. “Mas o que eu queria era exatamente aproveitar o máximo do que eles tem de bom. Ou seja, a parte técnica, a tecnologia deles, e os músicos, os grandes músicos que eles tem. Eu lutei muito com o Ronnie Foster, que é uma pessoa que eu amo e que ama muito a música brasileira, pra que a coisa não corresse pra margem de lá, você está entendendo ? Porque eles tem aquela coisa de querer americanizar tudo. Por mais que eles gostem...mas é uam coisa inconsciente. São assim desde o começo. Tudo que não é americano é inconsumível. Mas, na minha cabeça, como eles dizem que meu som é internacional, é um som extremamente viável nos Estados Unidos, porque não faze-lo como ele é realmente ? Porque usar o invólucro deles sem na minha opinião, há um marasmo nos Estados Unidos ?”.
“Eu lutei muito. Eu disse – não, tem que ser como tem que ser. Eu não vim pra cá entregar o ouro, assim. Eu vim pra cá fazer o que eu sempre fiz. Aí não teria sentido sair do Brasil, ficar 45 dias longe dos meus filhos, sofrendo uma saudade terrível, pra depois entregar tudo de bandeja pra vocês. Não.”
“Eu sou uma pessoa que não abre mão das coisas que faz”, prossegue Djavan acendendo mais um cigarro de baixos teores e abrindo mais uma lata de coca-cola. “Você não consegue me convencer de uma coisa que eu não quero fazer. Eu acho que só eu tenho certeza. A música, fui eu que criei, meu som já existe, independente de qualquer americano. Eu (e Ronnie Foster íamos) brigar, sair na mão, até, mas não ia ser diferente porque não houve jeito dele segurar a barra de fazer um som como se faz nos Estados Unidos. Caso contrário eu voltaria, arranjaria um outro produtor ou eu mesmo produziria meu disco lá. Mas não foi necessário isso.
Mas será que o resultado obtido em “Luz”não teria sido obtido aqui, já que o interesse principalmente era na tecnologia ? Djavan faz uma longa pausa e olha momentaneamente para os pés, calçados em sapatos chineses negros. “Olha, eu compus esse disco baseado muito numa música mais internacional, mais abrangente. É lógico que minha música nunca foi regional, nunca pretendi que ela fosse. Mas a composição desse disco tem algo de mais além fronteiras. Eu tenho um interesse antigo de expandir meu trabalho, de cantar em vários lugares do mundo, que esse trabalho seja avaliado por todo mundo...mas como foi mesmo a pergunta ? Ah! Obteria o mesmo resultado, em termos de qualidade. Porém, diferente deste. Eu acho que meu disco é diferente”, encerra Djavan antes de ser chamado irrevogavelmente para o ensaio, “da mesma forma que todos os meus discos são diferentes em relação aos anteriores, porque isso é uma busca minha. Eu jamais me contentaria em fazer um novo “Luz”no ano que vem. Aí não teria sentido. E o que eu aprendi durante todo o ano ? E o que eu vivi ? E as novas experiências ? Aí não teria sentido nenhum, porque a vida se transforma a cada minuto, eu me transformo a cada minuto, a minha música se transforma a cada minuto, uma vez que ela é o reflexo da minha passagem por aqui, ela é a minha existência em qualquer lugar do mundo, em qualquer momento.”

A existência de Djavan já o levou a muitos lugares e valeu-lhe uma experiência considerável para seus poucos anos, tornado menores por sua indisfarçável aparência de garoto arredio e carente, sublinhado por um olhar meio tristonho, meio desafiador. Ele é o caçula temporão de três irmãos – ele, Djacy e Djanira – nascido numa família de muitas “mães” em Maceió, Alagoas. “Todo mundo me queria,” confessa rindo, “porque era um garotinho gorduchinho, muito bonitinho, então eu era muito mimado. O que é ruim hoje, porque sou uma pessoa muito dependente, não sei fazer nada sozinho.” E a música entrou fácil na minha vida. Ou como ele prefere, “a minha vida entrou na música. Minha mãe sempre foi uma mulher muito cantante, rítmica (estala os dedos): era uma negra bonita, tinha um quê, uma quebrada africana. Tanto que , enquanto as mães cantavam Boi da Cara Preta, ela fez uma música pra mim: “Passo preto, gavião/segura o Djavan, senão vai o chão/ele é seu Djavan/ e nele só se vê falar/convidou seus camaradas /para poder vadiar/olê, passo preto.
Desnecessário dizer que na divisão rítmica e na poética da canção de ninar já estavam todos os germes que impregnariam absolutamente toda a criação de Djavan.
Contudo, não foi fácil deixar que a música acabasse de ver sua vida entrar nela. Por desejo da família, Djavan seria hoje um sargento do exército. Pensaram até em mandá-lo à Academia de Agulhas Negras, mas ele rebelou-se , fugiu de casa e arrumou um emprego como escriturário da Crush, para logo depois formar sua primeira banda, LSD. “Tocávamos muito Beatles”, diz, “e eu era o Paul McCartney.” Somente anos depois Djavan começaria a compor. E a pensar em ir para o Rio de Janeiro. Casado, com um filho nascido e mais outro na barriga de sua mulher, Aparecida, Djavan desembarcou no Rio em 72, sem conhecer ninguém. Graças às boites, Djavan conseguiu manter-se vivo, até que o radialista Adelzon Alves levou-o à João Araújo, presidente da Som Livre, que se interessou por Djavan e o contratou. O compacto duplo resultante – com “Flor de Lis” e “Fato consumado”, 2º lugar do festival Abertura – sairia apenas três anos mais tarde, por força exclusiva do festival.
Djavan voltou, então, à noite até ser descoberto pelo produtor Mariozinho Rocha no 706, no Leblon, que o lvou da Som Livre para a Odeon. Mas uma coisa incomodava Djavan. Seu primeiro álbum, ainda pela antiga gravadora, fora recebido com frieza pela crítica, que vira nele um “pseudo-Gil”, “porque não (tinha havido) paciência de descobrir a mim mesmo em meu trabalho.” Irado e magoado, Djavan iniciou, então, uma série de discos que, cada vez mais, delineavam uma assinatura personalíssima, progressivamente distante do que muitos viam nele. E que ele não era. Daí, talvez, o misto de estranheza e falta de compreensão como “Cara de índio”, “Alumbramento” e, em parte, “Seduzir” viriam a ser recebidos. A surpresa sempre foi o elemento mais importante da música de Djavan e dela ele sempre soube tirar proveito para tentar eliminar – ou aliviar – qualquer preconceito. Como se empunhasse uma espada de retoque criativo para usá-la com exatidão zen, como um samurai negro em turras contra o gosto pelo morno e imutável.

Os adversários que o Djavan de hoje enfrenta são muito mais sofisticados. Tomam a forma de um passado valioso que de difícil passou a clássico. Tomam a forma de forças antagonísticas que o fazem oscilar – nem sempre por vontade própria – entre o bairrismo e o além fronteiras. Tomam a forma de uma multinacional de discos que quer transformá-lo num astro internacional, provavelmente sem levar em consideração o quanto de genuinidade seu artista possa vir a perder, no meio do caminho.
No que depender do Djavan que em setembro ensaiava no Humaitá, essa nova batalha será tão arrefecida quanto longa, já que, aconteça o que acontecer, pareça o que possa parecer, Djavan é um sujeito basicamente teimoso e seus alvos são muito bem definidos, irrevogáveis. Pelo menos há franqueza quando ele diz isso. E quando diz que, no fundo, sua substância será sempre a mesma. Mutante e o quanto possível sem definição.
“Me incomoda muito isso”, Djavan conta enquanto escurece na rua, “essa coisa toda de sempre procurarem um rótulo, uma marca, de dizerem que Djavan é nordestino, é isso ou aquilo. Nem brasileiro eu quero ser ! Sem o menor preconceito. Eu quero que me digam que eu faço música, apenas.” “Não precisa me dizer que eu sou um compositor de música brasileira. Eu detesto essa sigla, MPB, eu odeio esse negócio , porque acho uma coisa preconceituosa. Eu acho muito ruim querer limitar a coisa que você tem mais pura, que é seu pensamento, sua criação, uma coisa que você tem dentro de você. Eu acho ótimo não ser compositor de nada e, sim, de música.”

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