sábado, 19 de janeiro de 2008

Serguei

Serguei e amiga (Foto sem crédito de autor)
Capítulo retirado do livro de Nelson Motta- “Música Humana Música”- Ed. Salamandra, 1980, Págs. 20 a 22.


“ENCONTRO NA NOITE, COPACABANA BLUES”

“Há quinze, vinte anos ele batalha, desde a Jovem Guarda, desde antes da Jovem Guarda. Ele sempre lá, nos programas de auditório, no Flávio Cavalcanti, em clubes pequenos, em inferninhos de Copacabana. Sempre cantando, sonhando com os superstars do rock e com as estrelas nacionais. Jamais conseguiu gravar um LP. Apenas dois compactos, sendo que um foi produzido pelo que vos fala, isso há quase uma década. Ainda me lembro que a música era de Luis Carlos Sá (ou do Guarabyra, bom compositor) e que só podia ser cantada em casa: o título era um impublicável e ingravável palavrão – justamente o berrado pelo protagonista da letra em cima de um caixote, em plena via pública e para todo mundo ouvir, como ato final de seu processo de liberação: “...sobre as roupas apertadas eu vestia um sobretudo/ Sobretudo uma gravata devagar me estrangulava, a cidade grande, o óleo do motor/Numa nuvem colorida uma alga luminosa, envolvida em nebulosa, abre as portas de veludo mostrando tudo que o mundo ocultava/ Minha vida é um terremoto, as certezas caem no chão/monto na motocicleta, na garupa o mundo e minha mãe na mão...canto muito, falo alto, subo num caixote digo um palavrão”caralho!!!!!”
Na gravação tivemos de substituir o palavrão por um berro, um urro. E não resultou legal, não dava para sacar o lance da letra. E ele era o cantor, que fez o máximo que podia e sabia e de igual forma executou as propostas da produção. Não aconteceu nada com o disco, apesar da “divulgação de guerrilha” que ele fez, maratoneando pelas rádios incansavelmente. Em vão: pouquíssimas pessoas tomaram conhecimento do disco. Não, ele não canta bem; pelo menos dentro dos critérios habituais de avaliação técnica e artística de um vocalista. Não tem um timbre original, seu sentido rítmico é precário e sua voz tem limitadíssimos recursos – sempre agravados por sua furiosa e invencível vontade de ser um cantor, que resulta em um nervosismo que o faz irremediavelmente rouco após a emissão da primeira frase da música. Não sei se ele é um cantor mesmo dentro dos mais elásticos e benevolentes critérios. Mas sei que é um artista – porque mantém acesa até hoje e cada vez mais a chama de se expressar para as jovens gerações, os rebeldes, os perdidos, as meninas de subúrbio, os pirados-friques-e-loucaços. As jovens gerações do tempo em que ele iniciou sua luta para cumprir o que acredita como sua vocação e ofício hoje já passam dos 40. E ele continua na batalha, disposto a tudo.

Quando Janis Joplin esteve no Brasil, como não poderia deixar de ser, procurou contato com as pessoas e barras semelhantes às de seu mundo violento – onde se sentia à vontade e podia ser Janis, uma pirada, uma marginalizada, uma sozinha, triste e auto-destrutiva garota do Texas. Assim num fim de noite ela foi parar em um inferninho ali nas bocadas da Prado Júnior. No show das 3 da manhã, depois de um strip-tease cansado e um dolorido “balé erótico” ele foi anunciado. Enquanto o conjunto de danças do inferninho se esforçava para produzir um impossível clima de agressividade e rock’n’roll, ele saltava no meio do exíguo palco e com suas lentes de contato violeta e sua longa cabeleira acaju berrava as primeiras palavras de “Tropicália” perante uma platéia que se não estivesse tão desatenta estaria atônita. Janis divertia-se, estava alegre e à vontade. Aplaudiu com entusiasmo e virou mais um gim. Com absoluta certeza, entre todos os casais (ou em vias de) presentes no local nenhum sequer sabia da existência de uma superestrela internacional chamada Janis Joplin. E muito menos que se tratava da hoje unanimamente considerada como a única cantora branca que conseguiu expressar o sentimento e a negritude dos blues, a criadora de um dos estilos mais pessoais e vigorosos da história da música popular, da milionária vendedora de milhões de discos e ansiada presença em qualquer show. E ela ria e aplaudia, falando alegrias indecifráveis em seu sotaque sulista e alcoólico.
A música seguinte, ele fervendo e paralisado no centro do palco, vendo “Ela” aplaudindo e rindo para ele. Era a sua deusa ali, de corpo e alma. Naqueles instantes intensos, Janis queria que ele cantasse mais, tinha entendido o que ele queria dizer, do seu modo - e se alegrado. Desviando seu olhar violeta daquele mitológico rosto que por misteriosa graça se iluminava, adolescente, ele pensou em Joe Cocker antes de soar a pontiaguda e clássica guitarra da introdução de “With a little help from my friends”. Na expressão de Janis, a doçura de reconhecer os primeiros e queridos acordes de uma velha amiga.
“What would you say if I sing out of tune ?” (o que você vai dizer se eu desafinar ?)
No esforço para tentar atingir com sua frágil e sofrida voz os registros inalcançáveis de Joe Cocker já na frase seguinte a canção vinha através de um murmúrio rouco, rouco e desesperado. Incontrolavelmente desafinado. E assim foi até o fim, para ainda mais surpreendentes e calorosos aplausos: com sua sensibilidade aguda, sofrida e generosa, Janis Joplin tinha respondido à pergunta que John Lennon e Serguei faziam na música com sua cumplicidade e aceitação, num puro ato de amor e alegria.
Passando da palavra e do sentimento à ação, como era de seu modo, Janis levantou-se e foi para o palco cantar com ele. Ela queria dar um little help a seu friend. Ele era o único que sabia que a americana era Janis Joplin.
Nessa noite, uma adolescente do Texas cantou com Serguei num inferninho de Copacabana. Pouco depois ela se deixava morrer, sozinha, em um quarto de hotel da Califórnia; e ele continuava tentando. E se lembrando. E tentando.”
Para saber mais sobre Serguei: Livro "Serguei, o anjo maldito" de João Henrique Schiller - Editora CZA
-CD Coletânea com as músicas retiradas dos compactos que ele gravou lançada pela loja "Baratos Afins" de São Paulo.

Um comentário:

Helivan Oliveira disse...

Texto lindo em todos os sentidos. Nossa como você escreve bem!